O livro Direito à Memória e à Verdade: Histórias de meninos e meninas marcados pela ditadura [link para o arquivo em PDF], publicado em 2009 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República, traz histórias de adolescentes ativistas políticos, além de crianças e
adolescentes que sofreram com a ditadura apenas pela opção política de seus
pais. Entre os casos descritos está o de Laerte Meliga, que militou no
movimento estudantil do Julinho, fez parte do grupo dos
"Brancaleones", juntamente com Ico Lisboa e Cláudio Gutierrez, entrou para a luta armada e foi preso e
torturado. Reproduzimos aqui o trecho que fala sobre ele.
Brancaleone adolescente
"Laerte
Meliga se declarou socialista aos 13 anos e aos 14, junto com um grupo de
amigos, rompeu com o Partido Comunista. Os garotos atrevidos foram apelidados Brancaleones,
em alusão ao filme de Mario Monicelli, O Incrível Exército de Brancaleone, uma
paródia satírica de Dom Quixote de La Mancha, que retrata a decadência do sistema
feudal e a capacidade humana de enfrentar perigos gigantescos para defender sonhos.
Por conta de sua militância, aos 17 foi parar na Fundação Estadual do Bem-Estar
do Menor (Febem), na ala dos adolescentes infratores, onde o trataram com o maior
respeito. Clandestino antes de atingir a maioridade, acabou detido novamente pouco
tempo depois. Com 18 anos, recém-feitos, passou por sessões de tortura e amargou
três anos e nove meses de cárcere. 'Lá eu aprendi muitas coisas, inclusive a escrever
certo', diz ele, hoje jornalista e subsecretário de Planejamento, Orçamento e administração
do Ministério do Planejamento.
Seu
interesse pelas escaramuças políticas do país vem de longe. Filho de uma
família de petebistas, ainda criança acompanhou de perto o Movimento da
Legalidade, quando o então governador gaúcho Leonel Brizola sublevou o Rio Grande
do Sul para garantir a posse do presidente João Goulart. Precoce, aos 11 entrou
de corpo e alma no movimento estudantil do Colégio Júlio de Castilho, um dos
QGs da resistência juvenil à ditadura em Porto Alegre. Daí para frente sua vida
foi norteada pelas passeatas, protestos, congressos. 'Eu me criei em uma vila e
ao meu redor só via injustiça, por isso tomei consciência da necessidade de
mudar', explica.
Com
16 anos, Laerte lia Sartre (Jean Paul Sartre, escritor e filósofo francês) e o compêndio
de livros proibidos pela repressão. Sua mãe – assombrada pelo perigo que as
leituras do filho representavam – um dia ameaçou jogar uma das obras
comprometedoras na parede. O filho não deixou por menos: pegou um prato de
porcelana antigo de estimação e avisou: 'Se jogar o livro, eu jogo o prato'.
Ela jogou e ele também.
Como
as atividades da militância o absorviam por inteiro, Laerte deixou o colégio Julinho
na terceira série por excesso de faltas. Ainda tentou completar o ginásio na
Escola Técnica Parobé, mas não concluiu. Antes disso, com apenas 17 anos e
virgem, entrou para a clandestinidade. 'Transei pela primeira vez um mês antes
de ser preso. Quase que entro virgem para a cadeia', recorda, divertido e
preocupado.
À
parte deste breve romance, a clandestinidade foi um período difícil, vivido em
São Paulo. Começavam os anos 70 – o período mais duro da ditadura – e o movimento
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), ao qual havia se vinculado, estava
sendo dizimado. Daquela época, lembra das pensões infestadas de pulgas, da expectativa
para entrar em ação e dos pesadelos da primeira noite em São Paulo, no dia 31
de março de 1970: 'Eu tinha a sensação de não ter pernas ou de que as pernas viravam
gravetos'. Ele também se questionava a respeito dos rumos da luta que, no seu
entender, estava entrando em um círculo vicioso voltada apenas para a própria sobrevivência.
Em
fevereiro de 1971, Laerte voltou a Porto Alegre para manter contato com um companheiro
de militância. Esperava por ele na avenida São Pedro quando recebeu ordem de
prisão. Foi levado ao DOPS gaúcho com um capuz na cabeça. Quando pressentiu a presença
de outros presos políticos, gritou alto o seu nome e foi coberto de pancadas. 'Eu estava tão quente que nem senti'. A dor veio com o pau-de-arara e o
eletrochoque.
Laerte
foi transferido para São Paulo em um avião comum da Varig. Os agentes colocaram
uma roupa sobre as algemas para não denunciar sua condição aos passageiros.
Também não o deixaram comer, porque voltaria a ser torturado no DOPS paulista, onde
foi direto para o pau-de-arara. Nos quase quatro anos seguintes, entre São
Paulo e o Rio Grande do Sul, passou pelo DOI-CODI, o quartel Serraria, o DOPS
novamente, o presídio Tiradentes, a Casa de Detenção e a Penitenciária do
Estado de São Paulo, além do Hospital Penitenciário, para onde foi levado após
32 dias de greve de fome.
Com
1m75cm de altura e habituais 68 quilos, ao final estava com 54 quilos.
Em
quase todas as celas onde esteve, a maioria dos presos era jovem. 'Depois que
passou a tortura, foi um período muito bom de aprendizado, apesar de tudo',
garante.
Encarcerado,
estudou de verdade pela primeira vez, norteado por uma espécie de curso sem
mestre encadernado. Durante longo tempo, escreveu uma carta para a família
todas as noites. Estas cartas eram corrigidas por seu companheiro da cela ao lado
Reinaldo Morano Filho, na época já advogado e estudante de Medicina. Laerte passava
os textos a limpo, mas nem sempre os enviava. Ele guarda os três cadernos de
rascunhos até hoje. Entretanto nem cogita usá-los como fonte para escrever um livro
de memórias ou algo do gênero. 'Quem tinha que escrever, já escreveu', opina.
Entre
as lembranças da prisão, está a camaradagem, a solidariedade e a autogestão da
rotina carcerária. O tempo era todo planejado: hora da leitura, hora da
ginástica e hora do trabalho, no caso a produção de artesanato em couro: 'A
gente fazia bolsa, pulseira, cinto, sandália e as famílias vendiam'. Os
parentes também eram responsáveis por fornecer a matéria-prima e as ferramentas.
A
privação da liberdade foi compensada pela consciência da necessidade da luta e
o orgulho de participar dela, garante Laerte, que saiu da prisão sem emprego,
atrasado nos estudos regulares, mas com experiência redobrada. Estava 'cheio de
gás'. Logo conseguiu emprego, entrou no supletivo e, em seguida, na faculdade.
Sem nunca deixar de militar. Sério por natureza, encontrou uma frase
bem-humorada para definir os quase quatro anos de cadeia: 'Perdi Saramandaia, mas em compensação li Cem Anos de Solidão. Em espanhol'."